A ansiedade sob a lente da ciência

O rigor da CID-11 e a busca global por um diagnóstico mais humano

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05/11/2025 às 12:26, atualizado em 10/12/2025 às 18:55

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CID-11 e DSM-5: Ferramentas de classificação da saúde mental (CID-11: 6B00-6B0Z).

A Classificação Internacional de Doenças (CID-11), da Organização Mundial da Saúde (OMS), e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da American Psychiatric Association (APA), são os dois pilares globais que fornecem a linguagem padronizada para a saúde mental. A CID-11, de caráter internacional e estatístico, é essencial para o registro global de todas as doenças, incluindo os Transtornos Relacionados à Ansiedade ou ao Medo (códigos 6B00 a 6B0Z). O estudo de campo global, como o conduzido por Rebello et al., é fundamental para validar se essas diretrizes conseguem ser aplicadas de forma consistente por clínicos de diferentes culturas e contextos, garantindo um padrão de cuidado ético.

O corpo humano tem uma forma peculiar de nos alertar sobre o perigo, e é justamente essa resposta que chamamos de ansiedade — uma companheira que nos impulsiona à ação e à autoproteção. No entanto, quando essa vigilância se torna excessiva, persistente, e começa a roubar a nossa paz, ela cruza a linha tênue do que é adaptativo e se instala como um transtorno de ansiedade. A vida deixa de ser vivida no presente e se transforma em uma preocupação constante com o futuro. A prevalência ao longo da vida de transtornos de ansiedade varia de 12% (em países de baixa renda) a 18% (em países de alta renda), segundo o Global Burden of Disease 2019 (Steel et al., 2014; GBD 2019). Diante de tamanha gravidade e da persistente lacuna de tratamento (mais de 70% dos indivíduos não recebem tratamento adequado, com um atraso médio de até 14 anos para o início do cuidado), a precisão diagnóstica se torna um ato de cuidado essencial.

O estudo de campo global — Avaliando o mapa da ansiedade

O artigo de Rebello, Keeley e colaboradores (2019) relata os resultados de um dos estudos de campo mais importantes da OMS, desenhado para avaliar a acurácia diagnóstica e a utilidade clínica das novas diretrizes da CID-11 para os Transtornos Relacionados à Ansiedade e ao Medo, em comparação com as diretrizes anteriores da CID-10.

Imagem do artigo: A ansiedade sob a lente da ciência

O estudo envolveu 1.840 profissionais de saúde mental de diversas partes do mundo, utilizando vinhetas de casos padronizados. Este método, conhecido como estudo de caso-controle baseado em vinhetas, permite controlar sistematicamente as variáveis da descrição do caso para examinar a influência das diretrizes na tomada de decisão clínica. O objetivo era claro: garantir que as novas diretrizes da CID-11 fossem não apenas cientificamente sólidas, mas também aplicáveis de forma consistente por clínicos globais.

Aprimoramento e clareza da CID-11 — Um avanço no diagnóstico

Os resultados do estudo de campo indicaram que a CID-11 se mostrou equivalente ou superior à CID-10 em termos de acurácia e utilidade clínica. Em termos práticos, isso significa que as novas diretrizes facilitam a tarefa do clínico.

Entre os pontos de destaque da CID-11, o estudo confirmou:

  • Maior Acurácia e Ciclo de Vida: Os clínicos foram significativamente mais precisos no diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), Fobia Específica e, notavelmente, no Transtorno de Ansiedade de Separação. A inclusão desta última categoria em adultos é um avanço clínico relevante. Por exemplo, um paciente adulto que evita viagens de trabalho ou compromissos sociais por medo intenso de que algo catastrófico aconteça a um ente querido na sua ausência pode agora ser diagnosticado, permitindo um tratamento mais direcionado.
  • Melhor Organização e Foco: A CID-11 eliminou a distinção rígida entre Fóbica e Outros Transtornos de Ansiedade da CID-10, reunindo todos os quadros cuja característica primária é o medo. As diretrizes agora usam o foco da apreensão (o estímulo ou situação que desencadeia o medo) como base clara para diferenciar os transtornos.
  • Diretrizes Claras de Severidade: As novas diretrizes fornecem orientações mais sistemáticas sobre os critérios de duração dos sintomas (não transitórios, persistindo por vários meses) e o nível de prejuízo funcional necessário, ajudando a diferenciar o quadro clínico da reação normal ao estresse.

Os desafios remanescentes e a importância do refinamento

Embora a CID-11 tenha demonstrado excelente aplicabilidade, o estudo de campo também destacou áreas que exigiam refino e foco em programas de treinamento:

  • Limites com a Normalidade e Superdiagnóstico: Os clínicos relataram dificuldade em distinguir a fronteira entre um transtorno e a reação de ansiedade subliminar (abaixo do limiar diagnóstico). Este é um desafio constante na psiquiatria; Batelaan et al. (2012) estimam que até 30% dos diagnósticos de TAG em atenção primária não persistem em follow-up de 2 anos. O esforço da OMS em definir diretrizes claras visa reduzir essa tendência, enfatizando que o diagnóstico só se justifica quando há sofrimento e prejuízo clinicamente significativo.
  • Ataques de Pânico: Foi necessária maior clarificação sobre como aplicar as diretrizes para ataques de pânico, especialmente no contexto de outros transtornos de ansiedade. A CID-11 esclareceu que um diagnóstico separado de Transtorno de Pânico só é necessário se houver ataques de pânico inesperados e que não estejam restritos à situação fóbica específica.

A Psicanálise, ao explorar o sentido do sintoma além da taxonomia, complementa esse rigor diagnóstico. Se na CID-11 o sintoma é cuidadosamente descrito e classificado, na Psicanálise ele é interrogado: De que perda ou desejo esse medo excessivo protege? A escuta analítica transforma o código (6B00-6B0Z) de apenas um mapa em uma paisagem complexa, garantindo que o sujeito seja acolhido para além da sua etiqueta diagnóstica. O estudo da OMS garante que estamos usando o melhor mapa disponível, elevando a esperança de reduzir a lacuna entre o início do transtorno e o tratamento adequado. Na prática, isso significa perguntar: 'Essa ansiedade impede o paciente de viver, ou apenas incomoda?'. A resposta define o diagnóstico — e o cuidado.

Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

BATELAAN, N. M. et al. Diagnostic stability of generalised anxiety disorder in the general population. Psychological Medicine, v. 42, n. 3, p. 559–567, 2012.

REBELLO, Tahilia J. et al. Anxiety and Fear-Related Disorders in the ICD-11: Results from a Global Case-controlled Field Study. Archives of Medical Research, v. 50, n. 8, p. 580–588, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.arcmed.2019.12.012.

STEEL, Z. et al. The global prevalence of common mental disorders: a systematic review and meta-analysis 1980–2013. International Journal of Epidemiology, v. 43, n. 2, p. 476–497, 2014.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Classificação internacional de doenças (CID-11). Disponível em: https://icd.who.int/en.

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